Valterlucio Bessa Campelo
Cheguei ao Acre na virada do ano de 1982-1983, portanto, há mais de 40 anos. Jovem agrônomo, segui uma carreira que me fez transitar por quase todas as instituições públicas ligadas ao Agro, enquanto na academia fazia algumas pós-graduações. Já em 1992, minha primeira dissertação, para o Departamento de Economia Rural da Universidade Federal do Ceará (UFC), versou sobre o processo de ocupação das terras do Acre. Hoje, além de manter vínculos com o Estado, atuo como articulista, consultor e escritor.
Isto dito apenas para apresentar-me como profissional que acompanhou, de ver, participar e estudar, os principais movimentos e projetos implementados no setor agrário acreano durante as últimas quatro décadas.
Dedico as próximas linhas a uma opinião sem ambições maiores do que o espaço permite, à experiência que se insere na perspectiva do desenvolvimento da Amazônia: a “florestania”.
Costumo dizer em algumas poucas palestras, que os anos 70/80 foram os últimos nos em que, ao chegarem ao Acre, os brasileiros vindos do Nordeste ou do Sul, principalmente, recebiam chaves. Sim, chaves simbólicas, com as quais poderiam abrir fazendas, pequenas colônias, comércios, escritórios, enfim, horizontes para suas vocações, interesses e recursos.
Para isso, os governos nas três esferas facilitavam a vida do chegante. Terra e infraestrutura ofertadas pelo Instituto Nacional de Reforma Agrária (INCRA), assistência técnica, armazenamento e serviços básicos pelas instituições estaduais e municipais, e crédito facilitado pelos bancos oficiais. Do resto, a fertilidade do solo, as condições climáticas e o suor do trabalhador davam conta. Formava-se assim uma grande perspectiva de que o Acre, a exemplo de Rondônia, faria uma transição entre o arcaico modelo extrativista e uma moderna agropecuária geradora de excedentes comercializáveis para os mercados consumidores.
Nos anos 90, em seguida à morte do sindicalista Chico Mendes, postumamente catapultado a mito ecologista, se iniciou o processo de retenção daquelas chaves e a feitura de cadeados que viriam a ser distribuídos daí em diante. Sim, o Acre passou a entregar aos chegantes um cadeado simbólico que fechava as portas e oportunidades na cara do cidadão. Não pode! Não é permitido! Não apoiamos!
Embora já tivessem início algumas medidas e planos no sentido do trancamento de possibilidades de investimento e geração de riqueza a partir da exploração da terra e atividades correlatas, foi em 1998, com a chegada ao poder político do Partido dos Trabalhadores (PT), que essa ideia força tomou forma de projeto. O desenvolvimento acreano de então e seu projeto fundante, a florestania, foi algemado ao movimento ambientalista internacional, que a partir de 1992, no Rio de Janeiro, adquiriu fôlego e financiamento, passando a estabelecer balizas, conceitos, normas, procedimentos, metodologias e, principalmente, conquistar a opinião pública.
Aqui, um breve parêntesis para esclarecer o felicíssimo slogan, criado pelo jornalista Antônio Alves, rapidamente disseminado na propaganda política e assumido ostensivamente pelo “Governo da Floresta”. Veja-se pelas palavras do próprio:
“Além de um conjunto de relações sociais, direitos, deveres, leis e conquistas, a florestania é um sentimento que pode ser expresso da seguinte forma: a floresta não nos pertence, nós é que pertencemos a ela. Esse sentimento nos induz a estabelecer não apenas um novo pacto social, mas um novo pacto natural baseado no equilíbrio de nossas ações e relações no ambiente em que vivemos. É um sentimento orientador para nossas escolhas econômicas, políticas e sociais –e por isso inclui a cidadania- mas orienta também nossas escolhas ambientais e culturais – e por isso a transcende”.
Como se vê, o conceito de florestania, a partir do autor do termo, é de uma fluidez que mais o aproxima da poesia, do sentimento das pessoas, do que exatamente de uma perspectiva de geração de riqueza e promoção da oferta de bens e serviços modernos à população. Mesmo assim, extremamente funcional e comunicativo. Em seu artigo “Cidadania? Isso é coisa de gente da cidade. Aqui na Amazônia o que nós precisamos é de Florestania”, Antônio Alves anuncia, sem o denominar, o “ecocentrismo” como base de um desenvolvimento adequado à realidade da floresta.
Se entre a intenção e o gesto, como diria outro poeta, há uma enorme distância, maior ainda é aquela entre o gesto e o resultado pretendido. Vale dizer, se foi uma ousadia implementar a florestania como perspectiva de promoção do pleno bem-estar socioambiental, mais difícil ainda foi fazer com que de fato essa condição fosse alcançada.
Eleitos em 1998, um grupo de técnicos, políticos e militantes de esquerda – os “meninos do PT”, todos na faixa dos 30-40 anos de idade -, deram início a uma jornada de remodelação administrativa do governo, de encerramento de certas atividades não ecológicas, a criação de órgãos de apoio à florestania, de cooptação de técnicos, da justiça, da universidade, de prefeitos, políticos e da mídia de modo avassalador. Pode-se dizer que nenhum setor do Acre ficou imune à ação do governo Jorge Viana, que sob o slogan “Governo da Floresta”, prometia a redenção do Acre em contraposição declarada ao modelo rondoniense baseado no agronegócio. Vez por outra se ouvia do próprio governador, “não permitiremos a rondonização do Acre”, ou “a vocação do Acre é florestal”.
Com apoio do Governo Federal desde logo, ainda com Fernando Henrique Cardoso, os operadores da florestania não tiveram oposição na burocracia. Era unanimidade lá e cá. Não havia NÃO no governo federal para a florestania, vale dizer, falta de recursos, apoio e prestígio não podem ser apontados como obstáculos ao Projeto.
Com Chico Mendes oportunamente erigido herói ambientalista mundial post mortem, emerge como sua “substituta” Marina Silva, que encarnava todos os rótulos identitários – mulher, ex-seringueira, pobre, negra, ambientalista e, ainda por cima, amiga do líder assassinado. Além disso, é historiadora, portanto, instruída ao ponto de compreender o papel que poderia desempenhar na questão ambiental. Vapt, vupt, Marina Silva é eleita senadora em 1994 e cai com sua história e estética nos braços da mídia nacional.
Rapidamente transformada em referência, Marina Silva soube como poucos esticar as mãos para o ambientalismo internacional e adotar a pauta globalista. Então, ocupou imediatamente o vácuo de liderança que se abria, recebendo para isso todos os favores da mídia nacional e internacional, que avançava na construção do aparato que vemos hoje sobrepondo-se às agendas nacionais.
Enquanto Marina Silva, nomeada ministra do Meio Ambiente por Lula, alçava voos, virava celebridade, recebia condecorações e frequentava os convescotes, debates e premiações internacionais, implantava no Brasil com um grupo que formou a partir das organizações não governamentais (ONGs) amigas, os máximos controles em obediência aos acordos que ela mesma mediava. No Acre, entretanto, o barco da florestania fazia água e as eleições estaduais eram sempre ganhas por pequenas margens percentuais, a sociedade já desconfiava do fiasco e algumas lideranças surgiam em contraposição ao modelo florestania, entre elas e de modo mais contundente, o atual senador Marcio Bittar.
Mesmo assim, além do governo-tampão tutelado do Binho Marques (2007-2010), o PT conseguiu assegurar mais dois mandatos com o projeto florestania, estes exercidos pelo médico Tião Viana, irmão do Jorge Viana e ex-senador pela mesma sigla. Em 2018, encerrou-se na prática, por fadiga e frustração, a utopia de Antônio Alves.
Para se ter uma ideia da extensão e profundidade do projeto no imaginário dos governantes da época, para mascarar os resultados, durante quase uma década eles insistiram na criação de um IFH – Índice de Felicidade Humana, que substituiria o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). A ideia era provar que o amazônida poderia dizer no meio da floresta: “sou lascado, mas sou feliz”, e isto o IDH não era capaz de mensurar. A iniciativa grotesca não prosperou.
Teoricamente, a florestania se ancorava numa proposta amplamente debatida na época – o neoextrativismo, que teve como um de seus mais ferrenhos defensores, o eminente professor e intelectual José Fernandes do Rêgo. Em um artigo, ele propõe uma ampliação conceitual:
“…o conceito de neoextrativismo abrange todo uso econômico dos recursos naturais não conflitante com o modo de vida e a cultura extrativistas. No sentido econômico, neoextrativismo é a combinação de atividades estritamente extrativas com técnicas de cultivo, criação e beneficiamento imersas no ambiente social dominado por essa cultura singular.”.
O termo foi praticamente abandonado junto com a florestania, que foi muitas vezes esmiuçada por estudos acadêmicos. Dela sobraram dívidas imensas, estruturas abandonadas, desânimo e a necessidade de correr contra o tempo e encontrar novas formas de enfrentamento da pobreza que aumentou fortemente, potencializando a criminalidade. O exemplo mais recente vem nesta terça-feira, dia 12 de novembro de 2024, com a decretação da falência da empresa “Peixes da Amazônia”, um sumidouro de dinheiro público. Foram 20 anos de estagnação, maquiagens urbanas, domínio total da mídia e endividamento.
As razões do fracasso são variadas e conhecidas, a começar por seus pressupostos. Em primeiro, o modelo dava como certa a capacidade do próprio Estado de guiar e até operar os investimentos, conforme suas próprias definições e aparato, através de sua burocracia. Em segundo, partiu de uma percepção equivocada em relação à empregabilidade, ao mercado e obtenção de escala e produção capazes de sustentar os empreendimentos. Então, mesmo que operado corretamente, o que também não foi, o projeto se assentava em bases falsas. Não poderia dar certo.
No transcurso, a florestania instalou uma burocracia e um aparato de poder renitente no Judiciário e na imprensa, que persistem ancorados na evolução do ambientalismo global, o que hoje dificulta severamente a mudança de rota. Então, se a florestania teve todos os ventos a favor e fracassou, a virada recente para o agronegócio tem todos eles contrários ou claudicantes, contando apenas com a lógica e a força do mercado.
Ultimamente, apesar de tudo, Marina Silva voltou para o Ministério do Meio Ambiente, depois de ser eleita deputada federal por São Paulo (inviabilizou-se politicamente no Acre), e trabalha com mais força e incessantemente pelo entreguismo da Amazônia aos interesses globalistas, sob a presunção jamais provada de uma suposta antropogenia do aquecimento global e, consequentemente, das mudanças climáticas.
Recentemente, Jorge Viana, o membro mais racional do PT no Acre, foi alçado à presidência da poderosa Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (APEX), mesmo somando quatro derrotas eleitorais seguidas no Acre. Em síntese, de vinte anos de florestania, além dos escombros físicos, culturais, conceituais e morais, sobraram as carreiras e o enriquecimento da maioria daqueles “meninos do PT” de 1998, hoje encastelados e protegidos pelo governo federal em cargos generosos.
A florestania é uma espécie de palavrão no Acre, símbolo de duas décadas perdidas, de um sonho-pesadelo, do falseamento de premissas e decisões equivocadas. Ressalte-se que não vai aqui sequer uma acusação de má intencionalidade. Trata-se de reconhecer que a ideia de promoção da felicidade a partir do neoextrativismo percebido nas palavras do jornalista Antônio Alves, é uma quimera e somente pode resultar em estagnação, como provado por vinte anos de experimentos fracassados.
Mesmo assim, talvez pelo forte apelo do slogan, a florestania ainda faz vítimas. Recentemente (11/2023), o indígena Ailton Krenak, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), deu uma entrevista (ver AQUI), publicada sob o título “Ailton Krenak: florestania para aprender a ouvir o rio e a montanha”, na qual o imortal abre espaço na replicação de Paulo Freire, para dizer:
“Se o mercado banalizou a experiência da cidadania, nós estamos com gesto, com ação ativa e esperançosa de criar a possibilidade da florestania, em que o humano sai um pouquinho de cena e deixa outros mestres falarem.”.
A não ser que o escritor esteja recriando, ou, atualizando a utopia de Antônio Alves, contida em seus aspectos poéticos e transcendentais, estimo que fala, sem saber, de algo já antes modelado, aplicado e fracassado. Especialmente por esta época de conexão global, de aspirações à modernidade em todos os lugares, comunidades, aldeias etc., é bastante improvável que uma “neoflorestania” sabe-se lá com base em quê, se afirme como alternativa viável. Menos ainda se vier garroteada pela ideia do aquecimento global antropogênico.
* Valterlucio Bessa Campelo é engenheiro agrônomo, mestre em Economia Rural, consultor, colunista e escritor. Reside em Rio Branco (AC).
Imagem: Diário do Acre